6 de maio de 2012

Os Espíritos da Floresta

[Fragmentos]
   "Kyrion olhou para o lado, ali estava Ubutundu, um amigo inesperado, alguém que o ajudou a chegar até ali, após fugir de Profanópolis, e ter a infelicidade de conhecer Avhog o Senhor das Trevas, o Terrível, assentado no Trono das Sombras, a coisa mais tenebrosa que havia visto até então. Pouco soube sobre ele, apenas que era filho da Elthra e de Bohoc, o Destruidor. Mas aquilo já havia passado, e não pretendia remoer mais pensamentos deste tipo. Não por enquanto.
   Ubutundu estava ali, prestes a ser consagrado Guerreiro dos Espíritos da Floresta, uma posição de honra entre os gardênios, um povo que nunca sonhara em conhecer, e que, apesar de ter lido e estudado a maior parte dos livros de História do Mundo Conhecido que tinham na biblioteca de sua cidade, que tanto amava, nunca havia ouvido falar deles. 
    E no entanto, ali estavam eles, guerreiros, xamãs, chefes tribais, multidões de habitantes das florestas, pôde ver até alguns Ruthos da Verdúvia e Gherdiens das Florestas do Sul. Não imaginava ver estes naturais ali, e daria tudo para que Asifa estivesse com ele. Sentia saudades de Asifa, aquela amiga que surgiu também de maneira inesperada, ajudando-o em sua fuga, quando os desmortos invadiram a cidade onde crescera. Sentia saudades de sua família, não havia recebido mais notícias de seus pais e irmãos, nem mesmo de Kaeran que o acompanhou por todo o caminho até o Abismo Vertiginoso, e ali se separaram, quando teve a doença do despertar... 
   E comaçava novamente a divagar quando Ubutundu se apresentou perante a assembléia. Sem dizer uma palavra caminhou até o xamã e se ajoelhou com o punho direito cerrado sobre a fronte. O xamã proferiu orações em uma língua antiga, que Kyrion não pôde distinguir, uma lingua das florestas.
   Estava começando o ritual de iniciação do guerreiro fez com que a magia da floresta se mostrasse cada vez mais poderosa. Kyrion se remexeu desconfortável em seu assento no galho de uma árvore muito antiga e alta, que parecia projetar assentos na maioria dos galhos baixos. Ali naquele lugar de reuniões muitas coisas eram estranhas como o altar, uma pedra coberta de musgo e outras vegetações rasteiras; a assembléia nas árvores, algo muito parecido com as assembléias dos Psylons, mas ao invés de serem feitos em pedra negra, tudo ali era verde, feito de natureza, de árvores, pedras cobertas de folhas, musgos, trepadeiras e uma infinidade de coisas que não entendia, e que nem queria prestar atenção para não se perder tentando entender o que era isto ou aquilo.
   Os cânticos ritualísticos tomaram força, eram sons de verde e planta, fauna e flora, eram músicas da floresta. Uma melodia além da compreensão de Kyrion, ao mesmo tempo em que ouvia farfalhar de folhas e gotejos de água, ouvia sussurros dos animais, e vozes da assembléia, água corrente, grilos cantando, sapos coaxando, e uma profusão de sons que seguiam uma melodia e harmonia bem definida, algo verdadeiramente vertiginoso. 
    Kyrion estava sentado na parte frontal da assembléia, e à sua volta havia uma grande quantidade de árvores entrelaçadas, formando uma muralha verde e marrom, impossibilitando a passagem de qualquer criatura maior que um inseto, e atrás da muralha central haviam árvores muito mais antigas que quaisquer outras que já havia visto até hoje. Elas possuíam algo que não se podia explicar o que quer que fosse, ali estava o coração da floresta. 
   Já não sabia quanto tempo estava a escutar aquela música, quando percebeu uma mudança estranha nas árvores gigantes. A magia fluía de tudo o que havia à volta de Kyrion.

   A maior e mais antiga de todas as árvores do coração da floresta girou em si mesma, tomando forma diferente, um rosto formou por entre folhas e galhos. Era rodeado por uma juba densa de folhas muito verdes e ramos finos, ramagens e cipós formavam uma barba que ia até o que representava seus joelhos, grossos braços de galhos maiores saíam por ambos os lados do corpo, mãos e dedos cheios de raízes se projetavam de sua extremidade; pernas de tronco e pés de raízes caminharam à frente enquanto as outras árvores tomavam formas vagas e se afastavam do caminho. O mais antigo veio para a frente, e com sua voz de galhos que se partiam e folhas que farfalhavam falou ao viventes:

Kyrion assistindo ao ritual de consagração dos guerreiros gardênios.

   - Viventes, bem-vindos sejam! - A voz de espírito-árvore soou em uma língua transcendental, que fez com que qualquer ser que o escutasse sentisse um profundo respeito ao ponto da obediência. Todos os presentes na assembléia, pequenos e grandes, crianças, adultos e velhos, guerreiros e nobres, imediatamente reverenciaram o Mais Velho de Todos.
   O xamã se adiantou e fez uma grande reverência ao Mais Velho de Todos. Kyrion não compreendia a língua que era falada, mas pôde distinguir um nome: Ghedur. E sabia o que significava. Incrédulo, percebeu que aquele realmente era o Mais Velho de Todos, só não sabia que ele um dia fora um espírito árvore. Havia estudado sobre os povos naturais, e sabia que Ghedur vivia ainda hoje, desde as Guerras Sagradas. Que ele havia auxiliado Yisaatar e seus amigos a derrotar Bohoc, e que mesmo naquela época ele já era velho. Inclusive não sabia se ele realmente era um natural ou outro tipo de ser. 
    Estava estupefato e assim continuou por um tempo enquanto o ritual seguia seu curso, e os guerreiros eram apresentados. Por fim Ubutundu foi apresentado também, e a árvore falou-lhe muitas coisas que nenhum dos presente pareceu entender, e sussurros se espalharam pela assembléia. As pessoas se espantavam à medida que Ghedur ia falando a Ubutundu, e por fim, o espírito-árvore fez algo incomum de se acontecer: trocou o nome de Ubutundu para Apuamapoena, causando assombro na assembléia e até mesmo no xamã. Mais tarde Kyrion veio a saber que significava "aquele que enxerga muito longe", e entenderia o significado disto tudo.

Kyrion fala com Ghedur o Mais Velho de Todos
e é atacado pelos gardênios.

   O espírito-arvore terminou de proferir suas palavras, que mais pareciam uma profecia, e então o ritual foi finalizado com mais preces e agradecimentos aos espíritos. Com uma pausa longa, como se esperasse por mais alguma coisa, o espírito-árvore começou a se virar para se retirar.
   - Por favor, espere! - Kyrion se levantou de seu lugar se dirigindo ao espírito-árvore, com medo do que viria em seguida.
   - Nãããão... - Gritou Apuamapoena, avançando rapidamente em direção à Kyrion que começava a levitar em direção ao centro da assembléia, numa tentativa frustrada de pará-lo.
   Neste momento várias coisas aconteceram ao mesmo tempo: os guerreiros levantaram suas armas, tomando posição de ataque; as pessoas que assistiam exclamaram horrorizadas; Apuamapoena gritava desesperadamente para que Kyrion parrasse aquela estupidez; Kyrion flutuou pairando defronte o espírito-árvore para fazer o que precisava fazer; o céu se escureceu, e o espírito-árvore se virou para Kyrion.
   - O que quer alma incompleta? - Perguntou a arvore em sua voz profunda de árvore.
   O tempo pareceu se deslocar com imensa lentidão, enquanto Kyrion formulava a pergunta que tinha tanto medo de ouvir mais uma das respostas enigmáticas. 
  - Por favor me responda. Quem sou eu? - Foi então que lanças, dardos, flechas e setas começaram a voar em sua direção. Os guerreiros tribais atacavam Kyrion com fúria incomum e horror desmedido. O espírito-árvore fazia sons resmunguentos como se concordasse com algo que não havia sido dito em voz audível.
   - Um Imortal! - Respondeu ele enfático. Mas em sua mente Kyrion ouvia a voz de outros espíritos da floresta: - Você é fonte de um poder antigo. Cobiçado por muitas forças que regem este mundo, e a maioria delas são malignas, cobiçado por reis, repudiado por povos, amado por raças. Quem saberá quem você realmente é? Só você mesmo! - As vozes não paravam.
   Kyrion defendeu os ataques dos guerreiros tribais com barreiras telecinéticas, mas ainda estava longe de acabarem suas perguntas, e os ataques não parariam. Não podia se concentrar nos ataques. Precisava de respostas. Farto dos ataques, criou uma barreira completa e contínua em torno de si. De fato, isto consumiria uma grande quantidade de poder, e ainda não havia recobrado suas forças perdidas em Profanópolis.
   O espírito árvore já retornava para seu lugar.
   - Por que eles me atacam? - Perguntou Kyrion.  - Para eles você maculou seu ritual sagrado. - Respondeu o espírito-árvore ainda caminhando lentamente para dentro do coração da floresta.
   - E para vocês? - Replicou ainda curioso.
   - Nós já o esperávamos há muito tempo. Agora preciso voltar, meu tempo acabou. Eles pararam o ritual, e já não tenho mais forças para sustentar esta forma. - Enquanto o espírito-árvore retornava à sua formas ancestral, os outros espíritos continuaram em sua mente: - Fuja rápido. Esqueça seu amigo por enquanto.Ele ficará bem e saberá o que fazer. Cuidado com suas escolhas, para que não se torne aquilo que mais despreza, aquilo que te persegue. - As vozes cessaram subitamente. 
   - Por favor, não vá. Há muito que preciso saber. Para onde vou? O que devo fazer? 
   Desolado, Kyrion não conseguia pensar em mais nada. Precisava de respostas, mas viu que tinha se preocupado com outras questões que no fundo não importavam, havia feito as perguntas erradas. De súbito, sentiu uma perturbação em seu escudo, algo havia penetrado-o: magia. Sem energia suficiente, contra magia seu escudo era quase impotente. Olhou para trás, mas a mente estava turva pela dúvida. A dor perfurou seu ombro esquerdo.
   Kyrion seguiu em frente, ainda flutuando, até o muro de vegetação, e virou para a direita onde os espíritos haviam aberto uma brecha, e não havia guardas. As árvores possibilitaram assim uma fuga mais rápida.
   Viu que os guerreiros começaram a montar em pássaros e grandes felinos para ir em sua perseguição quando olhou para trás pela ultima vez, ainda não entendendo bem o que vira quando foi atingido pela flecha mágica que permanecia alojada em seu ombro esquerdo. Virou-se para a esquerda, depois para a direita, as árvores pareciam formar paredes de um labirinto em volta de si, quando se deparou com uma descida íngrime, numa espécie de desfiladeiro, já havia virado tantas vezes para a esquerda e para a direita, que já havia se perdido logo na segunda curva, flutuando com a maior velocidade que podia alcançar com os escudos levantados sem esgotar completamente suas forças. 
   Seguiu em frente ouvindo os sons da perseguição, mas não queria perder tempo ou desviar sua atenção olhando para trás. Sua força se desgastava rapidamente, o ombro pulsava em dor desesperadamente. Baixou o escudo, e se pôs a flutuar rente ao solo, onde poderia aumentar sua velocidade e concentração, desviando dos obstáculos com maior facilidade.
   Um tubrilhão de imagens começou a assolá-lo enquanto fugia: quando recebeu a seta em seu ombro e olhou para trás, percebeu Apuamapoena abaixado ao lado do xamã, com um arco na mão, olhando em sua direção. Mas no arco não havia seta, logo percebeu que ele quem atirara a seta por ordem do xamã.

Kyrion foge de Gardênia.


   Dúvidas começaram a povoar a mente de Kyrion. Apuamapoena teria deixado de ser seu amigo? Se sim, quando? Não sabia, e nem se importava mais com aquilo. Sua visão começava a se turvar. Será que a flecha continha veneno também? Precisava chegar a algum lugar seguro antes que o veneno se espalhasse e o ferimento gangrenasse.
   Fugia com tanta pressa que nem percebeu que não havia mais perseguição: havia entrado em outra parte proibida da floresta, uma parte escura, de árvores estranhas, que pareciam perscrutar nas sombras. Suas forças começaram a se esvair enquanto adentrava cada vez mais naquele lugar estranho.
   Logo não via mais nada, seu corpo caía por entre as folhas, e só viu escuridão.

[Continua...]


   

2 comentários:

  1. Sabia que ficaria foda. Gosto de seus desenhos e dos seus textos também, e seu blog está lindo, mas eu sou suspeita pra falar né kkk

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